segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Por erro da Justiça, crianças crescem fora de fila de adoção no PR

Por erro da Justiça, crianças crescem fora de fila de adoção e buscam indenização por via judicial
Publicado por NATÁLIA CANCIAN
ENVIADA ESPECIAL A CURITIBA
Folha de S.Paulo
Gessér Santos, 20, não sabe para onde ir. Encaminhado a um abrigo após a morte da mãe, ele cresceu sem contato com a família de origem na capital paranaense.
Também passou dez anos sem a chance de encontrar uma família, já que nunca entrou no cadastro de adoção, por deficiências na Justiça.
Gessér e outros 13 jovens da Apav (Associação Paranaense Alegria de Viver), instituição que acolhe portadores de HIV em Curitiba, são o retrato de uma série de crianças que acabam "invisíveis" nos abrigos do país.
Agora, os adolescentes buscam uma resposta na Justiça. Mais que isso: uma indenização por terem passado anos praticamente esquecidos nas instituições.
Segundo juízes e especialistas ouvidos pela Folha, iniciativas judiciais como essas ainda são raras no país. No RS, há pelo menos dois casos.
No Paraná, a primeira ação do grupo da Apav foi protocolada em novembro.
As demais, com pedido de indenização de R$ 100 mil para cada um, estão previstas para este ano. A iniciativa é do Movimento Nacional das Crianças "Inadotáveis" –que perdem a chance de adoção por falta de ação do Estado.
"A vida inteira ficamos na expectativa de ter uma família. E a gente foi privado disso", diz Adrieli de Melo, de 18 anos, 15 deles passados no abrigo à espera de uma mudança. Que nunca aconteceu.
"Eu sempre fiquei aborrecida por nunca ter casais que viessem atrás de mim. Eu tinha três anos quando vim pra cá. Mas passaram 10, 12 anos, e nada, até a maioridade", relata a jovem, que diz ter sido excluída pela Justiça e agora faz planos para deixar a instituição com os "irmãos".
"Esperava ter tido uma família. Mas agora é tarde", diz outro jovem de Curitiba, de 16 anos, que sonha em ser modelo. Ou advogado, "para mudar o que está errado".

NEM LÁ, NEM CÁ

Segundo Thiago Marenda, advogado que acompanha o caso, mesmo com pouco ou nenhum contato com a família de origem, os jovens não tinham processos de destituição do poder familiar -por isso não entraram na lista de aptos para adoção.
"Não foi tomada nenhuma medida além de abrigar esses jovens", afirma o advogado.
Para Marenda, essa situação é mais frequente em "determinados perfis de crianças", como as mais velhas, com algum tipo de deficiência ou com HIV, por exemplo.
Há 14 anos no abrigo, João Luiz (nome fictício), 16, diz que nem mesmo o preconceito pelo HIV poderia ser uma justificativa. "A chance de sermos adotados não era de 100%, mas podia ser [ao menos] de 45% ou 50%."
Presidente da Apav, Maria Rita Teixeira confirma a demora da Justiça no acompanhamento de alguns casos.
"Raramente nos pediam relatório das crianças", relata a presidente, que diz ter recebido a primeira visita do Judiciário após 19 anos de funcionamento da Apav.
O Estatuto da Criança e do Adolescente recomenda que a permanência em abrigos não supere dois anos, salvo "comprovada necessidade".
A situação das crianças acolhidas deve ser reavaliada, no máximo, a cada seis meses. Hoje, há 46.544 delas em instituições, diz o Conselho Nacional de Justiça.

Matéria publicada originalmente na Folha de S.Paulo

'Era como se eu não existisse' diz jovem que ganhou ação
Cristiano Guedes, hoje aos 21 anos, foi indenizado por ter passado 15 anos fora do cadastro de adoção no RS
Processo de Cristiano ficou parado até que, aos nove anos, ele mandou carta diretamente à juíza

"Tia juíza, esses dias eu fiz um desenho e um pedido para a tia Adri, que mandou a minha carta para um juiz bem legal parecido comigo. Eu fico preocupado porque eu nunca vi um juiz. E daí eu acho que se esqueceram de mim aqui no lar. Eu moro aqui desde pequeno mas ainda não fui adotado."

O trecho acima faz parte de uma carta escrita em 2002 pelo menino Cristiano Guedes, com nove anos à época, e anexada em um processo da comarca de Erechim (RS).

Seis anos depois, a Justiça concedeu uma indenização a Cristiano por ele ter passado oito anos em um abrigo e fora do cadastro de adoção. Outro jovem abrigado foi indenizado pelo mesmo motivo.

"Só lembraram que a criança estava lá quando ela escreveu à juíza", diz a defensora pública Christine Balbinot, que acompanhou o caso.

Segundo ela, o garoto entrou no abrigo ainda bebê, em 1993, e teve o poder familiar destituído meses depois (um dos requisitos para que a haja a adoção). Em seguida, o processo parou. A suspeita é que tenha sido esquecido.

"Era como se eu não existisse", diz Cristiano, hoje aos 21 anos, cabo do Exército. Ele chegou a entrar no cadastro de adoção, mas não teve sucesso. Deixou o abrigo para viver sozinho.


(NATÁLIA CANCIAN)

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